Fragmento do texto da psicografia de Chico Xavier, Obreiros da Vida Eterna, Capítulo XV "Aprendendo Sempre:
Tema: Psicografia
4. Completada a
curiosa operação, tive minha atenção voltada para gemidos lancinantes, emitidos
de zonas diversas daquela moradia respeitável, agora semelhante a vasto
necrotério de almas.
Jerônimo entrara em conversação com vários colegas, enquanto a maioria
dos companheiros encarnados, em obediência à tradição, atiravam a clássica
pazinha de cal ou poeira sobre o envoltório entregue à profunda cova.
Impressionado com os soluços que ouvia em sepulcro próximo, fui
irresistivelmente levado a fazer uma observação direta.
Sentada sobre a terra fofa, infeliz mulher desencarnada, aparentando
trinta e seis anos, aproximadamente, mergulhava a cabeça nas mãos,
lastimando-se em tom comovedor.
Compadecido, toquei-lhe a espádua e interroguei:
— Que sente, minha irmã?
— Que sinto? — gritou ela, fixando em mim grandes olhos de louca — não
sabe? Oh! o senhor chama-me irmã… quem sabe me auxiliará para que minha
consciência torne a si mesma? Se é possível, ajude-me, por piedade! Não sei
diferençar o real do ilusório… Conduziram-me à casa de saúde e entrei neste
pesadelo que o senhor está vendo.
Tentava erguer-se, debalde, e implorava, estendendo-me as mãos:
— Cavalheiro, preciso regressar! conduza-me, por favor, à minha
residência! Preciso retornar ao meu esposo e ao meu filhinho!… Se este pesadelo
se prolongar, sou capaz de morrer!… Acorde-me, acorde-me!…
— Pobre criatura! — exclamei, distraído de toda a curiosidade, em face
da compaixão que o triste quadro provocava — ignora que seu corpo voltou ao
leito de cinzas! não poderá ser útil ao esposo e ao filhinho, em semelhantes
condições de desespero.
Olhou-me, angustiada, como a desfazer-se em ataque de revolta inútil.
Mas, antes que explodisse em rugidos de dor, acrescentei:
— Já orou, minha amiga? já se lembrou da Providência Divina?
— Quero um médico, depressa! só ouço padres! — bradou irritadiça — não
posso morrer… despertem-me! despertem-me!…
— Jesus é nosso Médico Infalível — tornei e indico-lhe a oração como
remédio providencial para que Ele a assista e cure.
A infeliz, entretanto, parecia distanciada de qualquer noção de
espiritualidade. Tentando agarrar-me com as mãos cheias de manchas estranhas,
embora não me alcançasse, gritou estentoricamente:
— Chamem meu marido! não suporto mais! estou apodrecendo!… oh! quem me
despertará?! Da fúria aflita, passou ao choro humilde, ferindo-me a
sensibilidade. Compreendi, então, que a desventurada sentia todos os fenômenos
da decomposição cadavérica e, examinando-a detidamente, reparei que o fio
singular, sem a luz prateada que o caracterizava em Dimas, pendia-lhe da
cabeça, penetrando chão a dentro.
Ia exortá-la, de novo, recordando-lhe os recursos sublimes da prece,
quando de mim se aproximou simpática figura de trabalhador, informando-me, com
espontânea bondade:
— Meu amigo, não se aflija.
A advertência não me soou bem aos ouvidos. Como não preocupar-me, diante
de infortunada mulher que se declarava esposa e mãe? como não tentar arrancá-la
à perigosa ilusão? não seria justo consolá-la, esclarecê-la? Não contive a
série de interrogações que me afloraram do raciocínio à boca.
Longe de o interpelado perturbar-se, respondeu-me tranquilamente:
— Compreendo-lhe a estranheza. Deve ser a primeira vez que frequenta um
cemitério como este. Falta-lhe experiência. Quanto a mim, sou do posto de
assistência espiritual à necrópole.
Desarmado pela serenidade do interlocutor, renovei a primeira atitude.
Reconheci que o local, não obstante repleto de entidades vagabundas, não estava
desprovido de servidores do bem.
— Somos quatro companheiros, apenas — prosseguiu o informante —, e, em
verdade, não podemos atender a todas as necessidades aparentes do serviço.
Creia, porém, que zelamos pela solução de todos os problemas fundamentais.
Apesar de nosso cuidado, não podemos, todavia, esquecer o imperativo de
sofrimento benéfico para todos aqueles que vêm dar até aqui, após deliberado
desprezo pelos sublimes patrimônios da vida humana.
Atingi o sentido oculto das explicações. O cooperador queria dizer,
naturalmente, que a presença, ali, de malfeitores e ociosos desencarnados se
justificava em face do grande número de ociosos e malfeitores que se afastam
diariamente da Crosta da Terra. Era osimilia similibus em ação,
cumprindo-se os ditames da lei do progresso. Castigando-se e flagelando-se,
mutuamente, alcançariam os desviados a noção do verdadeiro caminho salvador.
Fitei a infeliz e expus meu propósito de auxiliá-la.
— É inútil — esclareceu o prestimoso guarda, equilibrado nos
conhecimentos de justiça e seguro na prática, pelo convívio diário com a dor —,
nossa desventurada irmã permanece sob alta desordem emocional. Completamente
louca. Viveu trinta e poucos anos na carne, absolutamente distraída dos
problemas espirituais que nos dizem respeito. Gozou, à saciedade, na taça da
vida física. Após feliz casamento, realizado sem qualquer preparo de ordem
moral, contraiu gravidez, situação esta que lhe mereceu menosprezo integral.
Comparava o fenômeno orgânico em que se encontrava a ocorrências comuns, e,
acentuando extravagâncias, por demonstrar falsa superioridade, precipitou-se em
condições fatais. Chamada ao testemunho edificante da abelha operosa, na
colmeia do lar, preferiu a posição da borboleta volúvel, sequiosa de novidades
efêmeras. O resultado foi funesto. Findo o parto difícil, sobrevieram infecções
e febre maligna, aniquilando-lhe o organismo. Soubemos que, nos últimos
instantes, os vagidos do filhinho tenro despertaram-lhe os instintos de mãe e a
infortunada combateu ferozmente com a morte, mas foi tarde. Jungida aos
despojos por conveniência dela própria, tem primado aqui pela inconformação.
Vários amigos visitadores, em custosa tarefa de benefício aos
recém-desencarnados, têm vindo à necrópole, tentando libertá-la. A pobrezinha,
porém, após atravessar existências de sólido materialismo, não sabe assumir a
menor atitude favorável ao estado receptivo do auxílio superior. Exige que o
cadáver se reavive e supõe-se em atroz pesadelo, quando nada mais faz senão
agravar a desesperação. Os benfeitores, desse modo, inclinam-se à espera da
manifestação de melhoras íntimas, porque seria perigoso forçar a libertação,
pela probabilidade de entregar-se a infeliz aos malfeitores desencarnados.
— Vê-se, entretanto, que a mísera experimenta a desintegração do corpo
grosseiro em terríveis tormentos, conservando a impressão de ligamento com a
matéria putrefata. Não teremos recursos para aliviá-la?
Tomei atitude espontânea de quem desejava tentar a medida libertadora e
perguntei:
— Quem sabe chegou o momento? não será razoável cortar o grilhão?
— Que diz? — objetou, surpreso, o interlocutor — não, não pode ser!
Temos ordens.
— Porque tamanha exigência — insisti.
— Se desatássemos a algema benéfica, ela regressaria, intempestiva, à
residência abandonada, como possessa de revolta, a destruir o que encontrasse.
Não tem direito, como mãe infiel ao dever, de flagelar com a sua paixão
desvairada o corpinho tenro do filho pequenino e, como esposa desatenta às
obrigações, não pode perturbar o serviço de recomposição psíquica do
companheiro honesto que lhe ofereceu no mundo o que possuía de melhor. É da lei
natural que o lavrador colha de conformidade com a semeadura. Quando acalmar as
paixões vulcânicas que lhe consomem a alma, quando humilhar o coração
voluntarioso, de modo a respeitar a paz dos entes amados que deixou no mundo,
então será libertada e dormirá sono reparador, em estância de paz que nunca
falta ao necessitado reconhecido às bênçãos de Deus.
A lição era dura, mas lógica.
A infortunada criatura, alheia a nossa conversação, prosseguia gritando,
qual demente hospitalizada em prisão dolorosa.
Tentei ampliar as minhas observações, mas o servidor chamou-me a outras zonas,
de onde partiam gemidos estridentes.
— São vários infelizes, na vigília da loucura — disse calmo.
— Venha e escute-o.
Acompanhando meu novo amigo, reparei que o sofredor mantinha-se
igualmente em ligação com o fundo.
— Ai, meu Deus! — dizia — quem me guardará o dinheiro? Quem me guardará
o dinheiro? Observando-nos a aproximação, rogava, súplice:
— Quem são? querem roubar-me! socorram-me, socorram-me!..
Debalde enderecei-lhe palavras de encorajamento e consolação.
— Não ouve — informou o sentinela, obsequioso —, a mente dele está cheia
das imagens de moedas, letras, cédulas e cifrões. Vai demorar-se bastante na
presente situação e, como vê, não podemos em sã consciência facilitar-lhe a
retirada, porque iria castigar os herdeiros e zurzi-los diariamente.
Porque não pudesse dissimular o espanto que me tomara o coração, o
servidor otimista acentuou:
— Não há motivo para tamanho assombro.
Estamos diante de infelizes, aos quais
não falecem proteção e esperança, porquanto outros existem tão acentuadamente
furiosos e perversos que, do fundo escuro do sepulcro, se precipitam nos
tenebrosos despenhadeiros das Esferas subcrostais, tal
o estado deplorável de suas consciências, atraídas para as trevas pesadas.
Sem fugir ao padrão de tranquilidade do colaborador cônscio do serviço a
realizar, acrescentou:
— Segundo concluímos, se há alegria para todos os gostos, há também
sofrimento para todas as necessidades.
Nesse instante, Jerônimo chamou-me a postos.
Agradeci ao amável informante, profundamente emocionado pelo que vira, e
despedi-me incontinente. Esvaziara-se de companheiros encarnados a necrópole e
o próprio coveiro dirigia-se à saída.
Após agradecimentos mútuos e recíprocos votos de paz, sentimo-nos,
enfim, em condições de partir por nossa vez.
Antes, porém, minha curiosidade inquiridora desejava entrar em ação.
Como se sentiria Dimas, agora? não seria interessante consultar-lhe as opiniões
e os informes? Testemunho valioso poderia fornecer-me para qualquer
eventualidade futura de esclarecer a outrem.
Em minha esfera pessoal de observação, não pudera colher pormenores, uma
vez que a morte me surpreendera em absoluto alheamento das teses de vida eterna
e, no derradeiro transe carnal, minha inconsciência fora completa.
Nosso dirigente percebeu-me o propósito e falou, bem humorado:
— Pode perguntar a Dimas o que você deseja saber.
Manifestei-lhe reconhecimento, enquanto o recém-liberto aquiescia,
bondoso, aos meus desejos:
— Sente, ainda, os fenômenos da dor física? — comecei.
— Guardo integral impressão do corpo que acabei de deixar — respondeu
ele, delicadamente. — Noto, porém, que, ao desejar permanecer ao lado dos meus,
e continuar onde sempre estive durante muitos anos, volto a experimentar os
padecimentos que sofri; entretanto, ao conformar-me com os superiores
desígnios, sinto-me logo mais leve e reconfortado. Apesar da reduzida fração de
tempo em que me vejo desperto, já pude fazer semelhante observação.
— E os cinco sentidos?
— Tenho-os em função perfeita.
— Sente fome?
— Chego a notar o estômago vazio e ficaria satisfeito se recebesse algo
de comer, mas esse desejo não é incômodo ou torturante.
— E sede?
— Sim, embora não sofra por isso.
Ia continuar o curioso inquérito, mas Jerônimo, sorridente, desarmou-me
a pesquisa, asseverando:
— Você pode intensificar o relatório das impressões, quanto deseje,
interessado em colaborar na criação da técnica descritiva da morte, certo,
porém, de que não se verificam duas desencarnações rigorosamente iguais. O
plano impressivo depende da posição espiritual de cada um.
Sorrimos todos, ante meus impulsos juvenis de saber, e, amparando Dimas,
carinhosamente, efetuamos, satisfeitos, a viagem de volta.
.André Luiz
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